terça-feira, 24 de abril de 2018

quarenta anos


Quando era criança
As mulheres de quarenta, eram as avós
usavam um corte de cabelo arredondado
enfeitado com uma permanente que lhes acentuava o ar cansado
A maioria já tinham parido mais crianças
do que tinha planeado

Os dias escorriam-lhes pelos dedos
sem pressa
A espiral das suas existências
era desenhada por uma energia invisível
que não adivinhava grandes surpresas
O figurino não ia muito além dos aventais floridos
de uns poucos chinelos por cima das meias no Inverno
e os pés nus
durante as estações de Apolo
O centro destas mulheres era a casa
Quando a época era de flores
as mulheres reuniam-se alinhadas
barulhentas
depois vinham os homens
vestidos de silencio
e preparavam a cale borbulhante
as mulheres pintavam de neve
as paredes
os muros
os limites dos seus corpos
e os sonhos do passado
Eu olhava estas paredes
e sonhava com a neve das serras
fresca e fofa
esta era lava traiçoeira
na mão dos inocentes
Via estas mulheres a sovar
as horas
as roupas
os filhos
e os netos
depositavam neles o seu maior tesouro
A ESPERANÇA
Quando o tempo era de descanso aproveitavam
para tricotar camisolas enquanto esquartejavam a vida alheia.
ou então aproveitavam para remendar as suas
por entre lágrimas e sorrisos
Eu sentava-me à beirinha
invisível como um anjo
e punha-me á escuta
como que se percebesse...
As estórias que contavam eram quase sempre rubras
como são o Destino das fêmeas
os partos
as dores,
as traições
as doenças
os rodopios de lençois
as regras... que não vinham.
Neste tempo as crianças
não tinham quereres
não tinham ouvidos
e não tinham memoria
Mas eu lembro-me bem
Lembro-me de querer fugir de um destino
tão bem planeado
quanto os naprons que se colecionavam
junto ás panelas no baú do enchoval
Para mim
nunca existiu o tal baú
ás vezes pensava que era porque
o Futuro era coisa
que só acontecia nas estórias dos outros
e o meu espirito aquietava-se...
Cheguei à meta dos 40
E nunca foi tão claro para mim como hoje
que ao distanciar-me tanto daquelas mulheres
da minha infancia
Acabei a dedicar-lhes a minha vida
hoje enxugo-lhes as lagrimas
ofereço-lhes uma bandeira de esperança
e uma vela para seguirem a sua jornada
tiro-lhe os chinelos e as facas
e ensino-lhes a atirar setas certeiras
a fazer poções magicas de beleza
e a arte da alquimia da cozinha
da cama e do coração
sinto-me estranhamente
embalada por uma calma crescente
que me acentua esta mania
de me apaixonar
pelas pessoas
pelas causas
e pela vida
agradeço a todos os que me ajudaram a desenhar estes 40 Invernos e Primaveras
Profundo respeito
Gracias a la vida
com Amor 
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